OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

No seu estado atual, o mundo é um parque infantil para a mente do realizador e argumentista norte-americano Adam McKay. Primeiro a desconstrução da crise do mercado imobiliário em “A Queda de Wall Street” (2015), depois a exposição da influência sub-reptícia de Dick Cheney, quando era vice-presidente de George W. Bush, em “Vice” (2018). Está mais do que atestado que a sátira lhe corre nas veias. Nesse sentido, “Don’t Look Up” (em português “Não Olhem para Cima“) é uma comédia dramática que mantém o registo crítico do cineasta para efeitos razoáveis, pois embora consiga pormenorizar suficientemente bem a premissa, a execução da história e a escrita de algumas personagens deixa a desejar.

A narrativa coloca-nos em contrarrelógio quase de imediato. Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence), doutoranda em astronomia, e o seu professor, o Dr. Randall Mindy (Leonardo DiCaprio), descobrem um cometa a orbitar na periferia do Sistema Solar. Nada de extraordinário, não fosse este cometa do tamanho do monte Evereste e não estivesse a dirigir-se em direção ao planeta Terra.

Os cálculos são certeiros, mas o desinteresse da Casa Branca, aqui representada pela Presidente Orlean (Meryl Streep) e o seu filho pueril, Jason (Jonah Hill), no cargo de Chefe de Gabinete, força os cientistas a voltar-se para os media sem o apoio estatal. Preocupados com as circunstâncias, entregam a mensagem via televisão num programa da manhã. Para seu choque, do outro lado da emissão encontram um público chocantemente apático.

Jennifer Lawrence (Kate Dibiasky) e Leonardo DiCaprio (Dr. Randall Mindy)

Conseguirão os protagonistas convencer a Casa Branca e as pessoas de que, se nada fizerem, o mundo será destruído em cerca de seis meses? Essa é a pergunta base que espoleta os temas e dissabores do enredo. Desde os perigos da desinformação até ao negacionismo, passando pela politização egoísta de quem está no poder. Sem esquecer o papel abismal do império das empresas tecnológicas, que estão no epicentro de algumas das inquietações da atualidade. Se em “Melancolia” (2011), de Lars von Trier, o corpo que se espera que colida com a Terra representa uma depressão individual, em “Don’t Look Up”, McKay pinta um retrato de uma sociedade em crise de valores.

Esta interpretação é bastante literal porque a abordagem de McKay é tudo menos subtil. Por vezes até incendiária. Em suma, os ricos querem enriquecer mais, os governantes querem agarrar-se ao poder e a opinião pública divide-se como nunca antes visto. Tudo isto está articulado suficientemente bem na história e há entretenimento que chegue para suportar as mais de duas horas de filme.

O problema é que a caricatura das personagens, com tanto foco no choque, perde com facilidade as propriedades humorísticas. Ademais, há uma tremenda instabilidade entre o teor desesperante da narrativa e as suas ambições cómicas. Apesar de ser uma sátira, não me aventuro no campo da verosimilhança, pois a política norte-americana já nos acostumou a um certo absurdo.

Meryl Streep (President Orlean)

Não deixa, no entanto, de induzir uma desconfortável carga de ansiedade. A descrença na ciência – um óbvio paralelismo com o movimento de antivacinação contra a COVID-19 – já é por si incómoda, mas a fasquia sobe de nível quando o slogan de uma campanha política (o título) apresenta ressonâncias republicanas. Estas emoções são dilatadas pela forma como o cineasta monta as cenas: planos curtos e fluídos, um estilo em linha com os seus trabalhos mais recentes. Chegados os últimos minutos, embalado pela composição musical sentida de Nicholas Britell, um misto de desespero e de afeição preenchem a tela. Um final perfeitamente adequado de um filme que cumpre a sua missão apesar dos tropeços.

Distribuído pela Netflix e munido de um elenco ostentoso, “Don’t Look Up” é um içar de bandeira por parte de Adam McKay, que continua a tentar gerar conversas em torno de assuntos sociais, políticos e económicos. Não é sequer expectável que fique por aqui. A polarização do discurso e as crescentes controvérsias, aliadas a causas globais cada vez mais urgentes, são terreno fértil para o sarcasmo. Para o bem e para o mal, há quem esteja cansado de explicar o óbvio. Um cansaço patente que funciona tanto como combustível como lamento.

Bernardo Freire

Rating: 2.5 out of 4.

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Rotten Tomatoes

4 thoughts on ““Don’t Look Up”: Um apocalipse de valores

  1. Dizes tudo, Bernardo. Sem tirar nem pôr.

    1. Muito obrigado pelo feedback, Inês. Continuação de bons textos pelo blog Hoje vi(vi) um filme!

  2. Bernardo, muito boa a sua abordagem! Meus parabéns! Inclusive afirmo que a republicarei na Revista Conhece-te de fevereiro/2022 com o devido destaque. Na capa, irei pensar em algo bem sensacionalista para chamar ao teu texto. Embora o filme seja um misto de humor e ironia, existe um pano de fundo intrigante. Hoje, espalhados pelo mundo, telescópios gigantes ficam a vigiar o espaço. Imagine se um colosso destes estiver vindo em nossa direção? O mundo acabaria, e com ele O Barrete! oremos! Grande abraço e, mais uma vez, parabéns pela sua análise!

    1. Muito obrigado, Marcelo. Uma honra ter de novo a oportunidade de colaborar com a Revista Conhece-te, ainda para mais nos destaques!

      Continuação de boas análises e reflexões. Um abraço do outro lado do oceano!

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