Imagino a célebre casa da escritora, poeta e colecionadora de arte, Gertrude Stein (1874-1946), na rua de Fleurus, 27, no bairro de Montparnasse, margem esquerda do rio Sena, em Paris. Era ali que ela morava com a sua companheira de vida, Alice B. Toklas, formando um casal de relacionamento discreto e estável. Permaneceram juntas por quarenta anos, até à morte de Gertrude.
A casa tornou-se ponto de encontro de artistas e escritores como Pablo Picasso, Henri Matisse, Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Ezra Pound, entre outros. Foi um dos principais cenários do nostálgico filme de Woody Allen, “Meia-Noite em Paris” (2011), onde aparecem Gertrude Stein e o seu círculo de convidados intelectuais como personagens reais. “O passado sempre parece mais perfeito“, diria Gertrude com a sua inteligência, autoridade, mistura de humor e severidade.
Entro na enorme sala que se abre depois de uma escada em caracol. Observo atrás de uma pilastra a elite cultural presente, quando entra o impetuoso espanhol Pablo Picasso (1881-1973). Fala mal o francês, mas todos se entendem. Picasso é pura potência e energia. Gertrude dá-lhe especial atenção: reconhece nele o revolucionário, o amigo íntimo, aquele que rompeu as regras na pintura com o cubismo, assim como ela trouxe o experimentalismo, um estilo livre e moderno para a literatura.

Aua expressão repetitiva, quase gaguejante (“Uma rosa é uma rosa é uma rosa“), narrando os factos ao fluxo da consciência, com alta voltagem poética. Sim, ela e Picasso eram dois génios, é o que pensava, enquanto se aproximava dele fechando o xale com as mãos grossas.
Fui repassando um roteiro na minha mente, enquanto lia “Autobiografia de Todo Mundo“. Escrito por Gertrude, na primeira pessoa, refletindo o que aconteceu com ela depois da fama, do sucesso do livro anterior, “Autobiografia por Alice B. Toklas“, na voz de Alice, um conjunto de memórias e crónicas culturais de uma Paris modernista.
A amizade com Picasso passara de uma fase eufórica, de uma ligação criativa e simbiótica, para um distanciamento frio. As vanguardas haviam mudado, cada um seguira um caminho diferente. A relação dissolveu-se com o tempo e as transformações de um mundo entre duas guerras. Gertrude expõe que Picasso era um homem de temperamento forte, difícil, que se afastou das pessoas. A admiração permaneceu, mas a constatação da genialidade de ambos era agora uma antiga lembrança.
Gertrude compreendeu como ninguém que Picasso estava a criar uma nova realidade, não mais uma imitação da natureza. Foi a primeira grande crítica a abraçar o cubismo. Para ajudá-lo, ela e o seu irmão, Leo, adquiriram vários quadros de Picasso. Picasso pintou o seu retrato. Justo ele que não gostava de modelos. No quadro, ela está sentada, as feições angulosas, masculinizadas, num traje sóbrio e marrom. Picasso captara a sua essência.

Grande foi o impacto de Gertrude ao ver o quadro “Les Démoiselles d’Avignon“, “As Senhoritas d’Avignon“, no ateliê de Picasso. Ficou impressionada, perturbada. Escreveu: “Depois que ele terminou aquele grande quadro, nada mais foi o mesmo. Ele havia quebrado tudo o que existia na pintura“. Um divisor de águas. Uma obra-símbolo. Um rompimento com a tradição da pintura ocidental. Mas Gertrude não quis comprá-lo. Considerou a obra “difícil demais até para os modernos“. Para Leo Stein o quadro era chocante, repulsivo, “um monstro“. Sobre esse mesmo quadro, escrevi o poema:
“São prostitutas
Essas senhoritas
Expostas
No bordel da vida;
Nos seus rostos malformados,
Ferozes,
Há indecorosas propostas
E em suas pernas abertas
Um convite
Ao labirinto,
À luta com fantasmas.
Ficam ali na tela:
Paradas,
Plácidas,
Paralisantes,
Grudam em nós
Atraindo
Até a servidão completa.
Diante dessas prostitutas,
Senhoritas,
Não há respostas,
Apenas perguntas,
Arrepios de medo,
Necessidade de dominar,
Distorcer com força selvagem
E potência artística
O mistério da mulher.
Essas prostitutas,
Senhoritas,
Impactam,
Sobressaltam,
Reinam absolutas,
Mar feminino
De placentas e miasmas.
Essas prostitutas,
Senhoritas,
Sugam treva,
Lama,
Força bruta
Para dentro de seus peitos
Que se oferecem como frutas
E de seus buchos negros
De entranhas ocultas.
Picasso,
Touro de energia despótica,
Refocilou sobre esses corpos,
Com espanto e terror;
Depois, insatisfeito,
Entre desejo e dor,
Inovou a pulsão erótica
Dessas senhoritas,
Dessas prostitutas
Supremas e enxutas.“
Fecho as páginas do livro “Autobiografia de Todo Mundo”. Eu sou todo o mundo. Sou um ser, uma alma de artista. Medito, enquanto desço as escadas em caracol da casa de Gertrude Stein.
Pintura de Pablo Picasso, “Retrato de Gertrude Stein” (1905-1906)
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