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“Memories of Murder” (2003) – em português, “Memórias de Um Assassino” – conta a história de Park Doo-man (Song Kang-ho), o detetive responsável por investigar, juntamente com Cho Yong- koo (Roe-ha Kim), uma série de casos de tortura e assassinato a mulheres, na Coreia do Sul. O filme é escrito e realizado por Bong Joon Ho e baseado na peça de teatro “Come to See Me” (1996), de Kwang-rim Kim.

“Memories of Murder” desafia completamente a convenção deste género narrativo, nomeadamente, propondo um lado mais humano sobre a investigação. Desta forma, o realizador procura centrar o seu filme na realidade, tornando-o mais cru, mas sob um contexto específico, evocando também, concretamente, questões políticas da Coreia do Sul. Além disso, esta narrativa é baseada em factos verídicos, sendo que, nos finais da década de 1980, na Coreia do Sul, não havia ainda a ideia de um assassino em série, de maneiras que os investigadores têm a necessidade de reinventar os seus métodos mais convencionais para assim conseguir encontrar o culpado dos crimes.

Park Doo-man (Kang-ho Song)

Efetivamente, uma das mais belas características da história de “Memories of a Murder” está no requinte da credibilidade das suas personagens, isto é, estão de tal forma bem construídas e contextualizadas que o espectador acaba por ter imensa facilidade em se conectar com elas. Com isto, Bong Joon Ho desafia a ideia de um filme “sério”, através do seu ritmo contemplativo e do seu humor; humor, esse, que se torna natural ao longo da narrativa e, com isso, tremendamente convidativo. Por outro lado, importa referir que os assassinatos partem de duas premissas: as vítimas são mulheres e as mortes dão-se em noites de chuva.

Decerto, naquela época, na Coreia, as investigações de homicídio limitavam-se ao interrogatório dos conhecidos da vítima, não havendo grandes mecanismos de criação de perfil. Ou seja, tudo assentava em buscas e interrogatórios com base, acima de tudo, na persistência dos detetives. Nesta era de profunda ignorância, dois detetives, sob uma força policial profundamente mal apoiada, no fundo, só podem contar consigo mesmos para enfrentar esta terrível série de acontecimentos.

Tocando na ditadura sul-coreana e transpondo imensos traços e questões do quotidiano, “Memories of Murder” – que é, acima de tudo, um thriller de investigação –, acaba por conseguir ser muito mais do que apenas isso, fazendo uma crítica aguda à falta de flexibilidade dos métodos de investigação usados naquela época. A partir daí, constrói uma poderosa fábula sobre a maldade do homem, que se destaca por moldar uma marcante jornada policial, repleta de humor e de profundidade intelectual.

“Memories of Murder” (2003)

A partir de um certo momento, os investigadores, na verdade, pouco a pouco vão-se distanciando das pistas que possuem, tentando abraçar outros caminhos não tão óbvios. Para isso, a personagem de Seo Tae-yoon (Kim Sang-kyung) é de importância vital, uma vez que, através da sua visão fora da caixa, consegue desbloquear, muitas vezes, certas situações bastante obscuras. Ademais, à medida que as mortes se vão multiplicando, ele acaba por se ver dividido entre a manutenção da sua filosofia pessoal e a frieza que os acontecimentos ao seu redor lhe exigem. Tudo isto serve, igualmente, para enfatizar a inexistência de caminhos fáceis, quando estamos a tratar da classificação do caráter humano.

Além disso, “Memories of Murder” retrata a constante tensão de alguns atritos políticos (imortalizados em constantes sirenes e em violentas manifestações que se dão nas ruas), conseguindo, não só abordar a capacidade do ser humano em ir contra o seu semelhante, como também a influência que estes exercem uns sobre os outros, algo que pode espoletar, simplesmente, eventos catastróficos.

Neste sentido, é uma longa-metragem que exige bastante fôlego e reflexão por parte do espectador, especialmente porque nos presenteia com um desfecho interpretativo. De certa forma, o tempo psicológico parece que é profundamente espoletado, uma vez que ficamos presos à narrativa, tentando juntar as peças do quebra-cabeças que “Memories of Murder” cria na nossa mente.

Park Doo-man (Kang-ho Song) e Seo Tae-yoon (Kim Sang-kyung)

Assim, o filme situa o espectador no meio do caos que desenvolve, através de uma simplicidade cinematográfica rara e convidativa, mesmo promovendo, na sua mensagem central, uma urgência de ações arrebatadora, o criando o principal conflito (moral) da história. Com isto, estamos perante uma excelente representação da crueldade do Homem, que denuncia a fragilidade do artifício social que é construído através das caricaturas do realizador, na separação entre o bem e o mal.

Bong Joon Ho consegue, portanto, imortalizar a ideia de que todos nós não passamos, no fundo, de tábuas em branco à espera de serem preenchidas: e é, precisamente, esse vazio que nos leva a, muitas vezes, vaguearmos infinitamente pela vida e a não valorizarmos a essência das relações que estabelecemos com os nossos semelhantes.

Por um cinema feliz.

Tiago Ferreira

Rating: 3.5 out of 4.

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