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Porque A Arte Somos Nós

É comum questionarmos a nossa realidade, na tentativa de perceber se o que vemos, sentimos ou apreendemos do mundo não passa de uma ilusão dos sentidos. Desta forma, passamos a acreditar, por vezes cegamente, naquilo que os nossos olhos retiram da realidade material, em vez de sermos céticos em relação a essa mesma forma de encarar o nosso universo interior. Como consequência, somos frequentemente arrastados para um buraco negro de dúvida, desespero, falta de sentido e orientação. Mas, será que é mais digno viver eternamente na dúvida, sem conhecer o conforto de uma aparente certeza, ou apenas existir na paz de uma grande ilusão? A “Alegoria da Caverna“, de Platão, teria uma resposta a esta questão.

Este é um dos grandes aspetos desenvolvidos pela minissérie “1899” (2022), escrita e realizada por Baran bo Odar e Jantje Friese, e disponível no catálogo da Netflix. De facto, esta produção consegue espalhar uma enorme intelectualidade por todos os pontos da Psicologia em que toca, além de fazer um ensaio sobre a diversidade humana, as relações, os jogos/conflitos de interesses e até sobre a forma como as pessoas são comummente usadas, mesmo sem se aperceberem, somente para interesse de outrem. Além disso, tem a capacidade de contar uma história muito completa nas suas vertentes de ordem emocional, sendo uma fonte segura de entretenimento.

Maura (Emily Beecham) é uma das passageiras de um grande navio, Kerberos, repleto de imigrantes multinacionais, que visa viajar do velho continente para a América, encontrando pelo meio um autêntico mistério, que rapidamente se transforma num pesadelo. A dado momento, o comandante, Eyk (Andreas Pietschmann), depara-se com um navio à deriva, Prometheus, há meses desaparecido, e decide, por isso, mudar a sua rota a fim de investigar o que aconteceu ao navio. A partir deste ponto, os verdadeiros e mais autênticos mistérios da trama começam a acumular-se e, com eles, um par de tensões, que adensam o ambiente e espoletam diversos conflitos.

Maura (Emily Beecham) e Eyk (Andreas Pietschmann)

É certo que num primeiro momento não há grande espaço para explorar, a fundo, as individualidades das personagens, uma vez que a intenção inicial é a de construir o cenário problemático comum aos passageiros. No entanto, o ritmo narrativo começa com uma determinada força, podendo até ser encarado como repetitivo e previsível, mas tudo é feito com peso e medida, globalmente falando. A ideia passa por dividir a história, fundamentalmente, em duas partes: uma mais de contextualização e outra mais de aprofundamento intelectual. A verdade é que esta divisão acaba por resultar em pleno, oferecendo ao espectador dois universos com significado na medida certa.

Um aspeto que deve ser positivamente enaltecido em “1899” diz respeito à multiculturalidade que apresenta. Perante toda a situação caótica e incompreensível que se gera, esta particularidade afigura-se como algo metafórico, no sentido em que este conjunto de pessoas, com as suas diferenças culturais e comportamentais, revelam, naturalmente, modos díspares de agir perante a adversidade; contudo, o que elas têm em comum é que imortalizam vidas recheadas de trauma e luto, o que não só adensa o interesse por detrás de cada um dos personagens, como também justifica todo o leque de tensões que é espoletado. Com isto, o mistério patente à história vai-se tornando cada vez mais profundo e envolvente.

Efetivamente, neste contexto, vai-se estabelecendo uma relação particularmente interessante entre Maura e Eyk, ambos altamente confusos pela realidade em que estão inseridos. A dado momento, certas incongruências vão surgindo e o carácter misterioso do navio Prometheus vai-se reforçando. Para tal, certas pistas e símbolos, distribuídos inteligentemente ao longo da história, vão preparando o terreno para uma amálgama de revelações e reviravoltas deveras reconfortantes. Tudo isto contribui para a criação daquela que é, num ponto concreto da história, uma estrutura narrativa deveras estimulante, pois, por vezes, à medida que esta se vai desenrolando, vão surgindo cada vez mais dúvidas e menos certezas na cabeça do espectador.

“1899”

Do ponto de vista técnico, esta produção é, simplesmente, irrepreensível. Revela uma direcção de fotografia deveras impressionante, a partir da qual os cenários idealizados e construídos demonstram ser ricos e bem elaborados, conseguindo, inclusive, sobretudo nas cenas com o mar como background, serem certeiros nos efeitos visuais. Por outro lado, é evidente que chegamos ao fim da experiência que “1899” nos proporciona com um certo sentimento de incompletude; incompletude, essa, que poderia ser preenchida com, pelo menos, mais uma temporada de desenvolvimento intra e interpessoal das personagens. Não é o caso, pois a Netflix não avançou mais com este projeto, deixando, por isso, um sentido agridoce.

As pontas soltas deixadas pela série justificavam a necessidade de revisitar, com maior detalhe, a profundeza das personagens que ficaram pelo caminho. Contudo, esta produção vale pela sua arte em conciliar todos os seus mistérios de forma equilibrada e coesa, onde existe uma clara atenção aos detalhes que as peças deste complexo puzzle constituem. A contribuir para a aproximação do espectador à história estão belas interpretações, sendo que, todas elas, perante a atrativa mescla de personagens, exigiram vertentes bastante diferentes a cada ator, justificando assim o carácter eclético desta produção. Carácter, esse, que se expande aos seus fortes e inesperados plot twists.

Assim, “1899” promove toda uma experiência intelectual deveras fascinante: assim que começa a dar azo a uma linha narrativa mais virada para o questionamento humano e a própria essência filosófica que estar no mundo acarreta, a história começa a fluir com outra cara. Até lá, não é que não estivesse a fazer o seu trabalho bem feito, mas só o compreendemos numa fase mais avançada. De qualquer das formas, reforça-se o sentimento de incompletude, perante uma série que estava naturalmente pensada para ter mais do que apenas uma temporada. Ainda assim, perante um puzzle decerto incompleto, a viagem que proporciona torna-se mágica e marcante.

Pela beleza da sétima arte.

Tiago Ferreira

Rating: 3 out of 4.

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