Adonias Filho era um escritor e filósofo famoso. Vinha de conferências universitárias pela Europa e, a bem da verdade, estava decepcionado com as coisas do jeito que estavam. Pensador com alcance universal, debruçava-se sobre si mesmo e reverberava sempre os conflitos entre os povos, o pouco caso que as pessoas davam para a cultura e a falta de bom senso que imperava entre o grosso da população.
Contraditoriamente, o avanço das comunicações auxiliara mais a grosseria e a falta de cortesia entre as pessoas, sendo que ele sempre aventava a ideia um tanto polémica de Umberto Eco: “Antigamente, os imbecis eram imediatamente silenciados, mas agora, com o advento das redes sociais, ganharam o mesmo direito à palavra que um Prémio Nobel“. Não que Adonias quisesse que o direito à palavra fosse um direito aos de sua classe, ele que agora se enquadrava no perfil de Prémio Nobel, tendo sido o primeiro escritor brasileiro a ser laureado em Estocolmo.

Não era vaidoso, longe disso, e nas reuniões universitárias, nas entrevistas que concedia a grandes jornais, enfim, a sua persona pública sempre reparava a superficialidade das questões: as perguntas dos jornalistas faziam crer que a imprensa mundial estava em crise, contratando apenas estagiários com déficit de leitura. Os seus encontros académicos atraíam baixo público, apenas um rol de eleitos e que na maioria das vezes reverberavam os seus próprios escritos e massageavam os seus egos, lustrando os umbigos. Adonias, a despeito de toda a fama obtida com o Nobel, estava-se a sentir impotente frente a tanta ignorância no mundo, ainda mais que vinha de debates interculturais e inter-religiosos em universidades de Berlim, Frankfurt, Amesterdão, Viena, Praga, Paris e Madrid.
Antes de retornar ao Brasil, decidiu passear pela Península Ibérica. Viajaria pela Espanha e chegaria a Portugal, e, num voo da TAP, retornaria ao Brasil. Chegou a Córdoba, na Andaluzia, e o seu espírito foi tomado por uma paz infinita. Estrategicamente, aderiu a vestes menos sociais e mais desportivas, deixando propositalmente crescer a barba e acrescendo ao seu visual um chapéu e óculos escuros. Queria evitar ser reconhecido, com o Nobel a sua visibilidade se tornara mundial, pelo menos para a parcela mais intelectual da população, e ele não desejava ser solicitado para selfies e mesmo pedidos de autógrafos. Sua intenção era tirar férias de si mesmo.
As suas primeiras horas em Córdoba permitiram-lhe isso. Uma terra extremamente seca e logo ele percebeu, pelo conjunto arquitectónico, que ali havia a influência de vários povos e culturas, como os romanos, os muçulmanos, os judeus, e no presente os cristãos, e observava que tudo convergia muito bem. Hospedou-se num simpático hotel na Judería, e pagou adiantado três diárias. Dirigiu-se ao quarto e dormiu como há muito não dormia. Estava muito cansado.
Passeando pela cidade após o delicioso café da manhã, visitou a imponente catedral cristã, a outrora Grande Mesquita construída pelos mouros no século X. Do lado de fora, fotografou o Pátio de los Naranjos, cercado por laranjeiras e palmeiras aromáticas. Ainda no pátio, observou a Porta das Palmas, que se abria para a sala de orações. Pagou o ingresso e adentrou a Catedral, ficando maravilhado com tanta beleza arquitectónica e advinda de tantas culturas e manifestações artísticas.
Filosofou que as culturas muçulmanas-islâmicas, cristãs romanas e ortodoxas russas, orientais budistas e tantas outras, poderiam-se encontrar neste lugar, de modo a se emocionarem com o ambiente e perceberem que é a coexistência de aspectos culturais que engrandece um povo, e não a pretensão de eliminação o outro, pelo simples motivo de ser diferente. Embevecido, permaneceu ali por longas três horas e após o almoço, ainda encontrou tempo para conhecer a Casa de Sefarad, que é um museu sobre a cultura, a história e tradição sefardita, atribuída aos descendentes de povos originários da Península Ibérica.
No dia seguinte, refrigério do clima árido e pouco convidativo, já que o mês de julho indicava o verão inclemente, o nosso intelectual e escritor adentrou os lindos pátios de Córdoba (havia lido num guia de viagens, mas não poderia imaginar que estar ali presencialmente arrefeceria e muito o seu espírito. Adentrou uma ruela e perdido ficou entre uma comitiva de turistas que fotografavam as paredes brancas, os vasos e a torre da Catedral. Ele mesmo estava com a sua câmara pendurada no pescoço, disfarçado como um típico turista. As flores atacavam o campo de visão com a sua beleza indescritível.
Viu uma escultura de um menino de bronze regando as plantas em uma escada, sendo auxiliado por um senhor (seria o pai?) e aquele ambiente todo o cativou. Jasmins, gerânios, buganvílias, lilás, rosas, um cágado, vários gatos e a simpatia das pessoas do lugar, de tudo exalava um perfume inebriante e apaziguador. Essa coexistência de flores em jardins tão bem cuidados remeteu-o à uma frase do filósofo Voltaire, que no final da sua novela “Cândido” citou: “Devemos cultivar nosso jardim“.

Metáfora com a qual Adonias Filho se apegara, uma vez que agora com a distinção do Nobel, todos o procuravam para saber as suas opiniões como filósofo. Nas entrevistas, respondia sempre que cada um de nós era responsável pelas suas próprias ações, e que esse conjunto de ações particulares (não se muda o mundo se não mudamos a nós mesmos) resultaria num mundo melhor.
Saindo da metáfora para a realidade, estando ali admirado com tamanha beleza em cuidados tão singelos, porém profundos, argumentou a si mesmo que escreveria uma crónica afirmando que, depois de várias e várias andanças, havia encontrado enfim a resposta para as desavenças entre todos os povos. Que cada um se purificasse e livre do amargor do coração, fosse viajar e encontrar enfim o paraíso na Terra, localizado na Andaluzia, na cidade de Córdoba, onde as nossas almas transmigrariam para pétalas das mais belas flores que ficavam localizadas nos bonitos pátios da cidade. Quis se perder ali, admirado por tamanha beleza, aromas e jogos de cores.